Guarulhos, SP, 1986
Na ponta da língua ou do lápis, na movimentação dos corpos celestes e de baile, emergem escritas que orientam e registram a vida. Nas inscrições concretas ou nos traços invisíveis que conectam os astros estão guias que se revelam para quem os souber ler. Em cada página e em cada constelação reside uma chama capaz de abrir portais entre mundos, criando rotas de fuga, convertendo caminhos em dinâmicas de potência e espaços de liberdade.
Rafael RG trabalha conexões vitais a partir de duas fontes de informação, ou matérias-primas: o afeto espontâneo que nasce de suas experiências pessoais e encontros íntimos; e a pesquisa documental, interessada, sobretudo, por memórias latentes em arquivos. Por meio desse enlace, sua obra costura a dimensão subjetiva com vivências coletivas, promovendo discussões políticas, raciais e sexuais. Suas relações eróticas, amizades e outros envolvimentos cruzam-se com o espectro ampliado da vida em sociedade. Seus textos, objetos, performances, instalações e proposições catalisam imaginários na linha cortante que separa o registro documental da ficção, tensionando o limite entre memória e fabulação. Muito embora sua obra sempre encontre novas formas para manifestar essas ideias, em comum há a intenção de criar atravessamentos que transcendem épocas e categorias, revelando a força dos laços afetivos diante da aspereza de um mundo organizado em estruturas arbitrárias. Nesse sentido, o amor e os vínculos entre pessoas racializadas e em grupos historicamente marginalizados é um tema recorrente. Ao adotar um certo nomadismo em sua vida pessoal, que impacta diretamente sua pesquisa e sua prática, Rafael RG costura suas vivências intensas em muitas partes do Brasil numa miríade de reflexões biográficas, crônicas, poesias e outras estratégias narrativas.
Para o 38º Panorama, Rafael RG apresenta duas obras comissionadas que se conectam e se complementam em suas naturezas: uma objetual e outra performática. Na primeira, o projeto De quando o céu e o chão eram a mesma coisa (2024), o artista resgata grafias imemoriais inspiradas na observação do céu. Nele, Rafael RG evoca a relação entre o terreno e o firmamento na fundação da espiritualidade, utilizando símbolos e escrituras que remetem às práticas mais antigas de compreender a vida na Terra pelo movimento das estrelas. A obra faz referência a locais sagrados como a Pedra do Ingá, na Paraíba, um sítio arqueológico célebre por suas pinturas rupestres pré-colombianas associadas a práticas espirituais e astrológicas, conectando o terreno ao celestial, e às escrituras da sociedade secreta cubana Abakuá, cujos ricos simbolismos cosmológicos preservam uma resistência cultural em meio à diáspora africana no Caribe. O artista inscreve essas grafias com folhas de ouro aplicadas por meio da técnica de douração — tradicionalmente utilizada em arte sacra e barroca — numa grande rocha extraída das jazidas de pedra-sabão de Minas Gerais. No trabalho, esses dois elementos materiais de amplo uso na exploração colonial e na tradição católica são ressignificados em uma cosmologia não cristã, um outro sagrado permeado por poesia e livre imaginação. Nesse contexto, a escolha desse material simboliza a fusão entre o espiritual e o matérico, entre a escrita e a geologia, criando uma obra que é tanto um marco físico quanto uma aspiração cósmica.
Na segunda obra, Rafael RG propõe a performance Ao cair da noite, eu me guiarei pelo brilho dos seus olhos (2024). A obra envolve profissionais da astronomia que, junto ao artista, reelaboram narrativas ocidentais modernas baseadas em mitologias greco-romanas sobre as constelações. Ao utilizar sons ambientais e leituras ao vivo combinadas à projeção de luz, o artista cria uma sinfonia que evoca as rotas de fuga dos ex-escravizados, para os quais o rastro das estrelas oferecia uma chance de escapar da opressão e iniciar uma nova vida. Além disso, a obra incorpora as observações dos povos originários e seus registros em pedra, contribuindo para a memória contemporânea de diferentes visões cosmológicas.
(1-5) De quando o céu e o chão eram a mesma coisa, 2024, pedra sabão e folha de ouro 22k, 170 x 260 cm. Preparação e edição de desenhos: André Victor. Cortesia do artista e Mitre Galeria. Com apoio de Pedra Sabão do Brasil, Quartzito do Brasil, Dinária Loch e Salésio José Loch