São Carlos, SP, 1983
O peso da massa antropogênica paira sobre nossas cabeças; sob nossos pés, o verde e o vazio, as seivas e as chamas. O aço é o fio que demarca a terra e separa a gente, que encarna na máquina que arqueia a mata, desertifica a vida, transformando o mundo pela negação. Sob um calor massacrante e cores rubras, a era do ferro escancara o abismo existencial que se abre diante da hecatombe ecológica. Do outro lado desse buraco, só poderemos encontrar o mistério de nós mesmos, e do nosso inescapável estado de transformação.
O trabalho de Frederico Filippi baseia-se numa investigação intensa de conceitos e fenômenos contemporâneos, desdobrando uma mesma energia por meio de diferentes mídias, como pintura, desenho, fotografia, vídeo, performance e instalação. Sua prática, centrada nos contrastes e conflitos fronteiriços, discute a complexidade das intersecções e dos hibridismos entre diferentes vetores, e como uma coisa pode reverberar na outra. Seu campo de interesse, portanto, abeira-se dos limites entre os espaços naturais e as máquinas industriais, entre as formas de vida originárias e a voracidade acachapante do capital. Por vias narrativas não lineares, suas obras encaram de frente a estranheza e a violência do mundo. No entanto, abraçam uma noção ecológica abrangente, que não separa o homem do meio, a cultura da natureza, ou o advento tecnológico do elemento natural. Por meio de pesquisas que abrangem uma série de disciplinas e técnicas, bem como vivências e colaborações comunitárias — marcadamente no Igapó Açu, na BR 319, no Amazonas —, o artista aborda a colisão e o atrito como ferramentas conceituais para reelaborar criticamente o imaginário social do Brasil e da América do Sul sob as marcas indeléveis do capitalismo avançado. Nessa voragem densa, quente e cortante, os fatos e suas imagens são devorados e regurgitados, deixando como resultado questionamentos metafísicos e materiais diante das transformações aceleradas que moldam — e agora ameaçam — nossa existência.
O artista apresenta duas obras inéditas, frutos de processos anteriores, mas que culminaram em projetos comissionados para o 38º Panorama. A primeira, Moquém – Carnes de caça (2023-2024), é composta por peças remanescentes de dois tratores incinerados pela Polícia Federal após uma operação de fiscalização em garimpos ilegais, na região de Itaituba, Pará. Na obra, esses resíduos queimados e derretidos são expostos num arranjo composicional, sob uma estrutura em grid. Sobre as peças, há incisões pontuais feitas com piche: desenhos livres, mas que remetem a padrões encontrados na natureza. O título da obra aponta a referência que fundamenta essa estrutura: “moquém” era o nome que o povo Tupi dava à grelha de madeira para assar carnes, fossem elas de animais ou de prisioneiros preparados para rituais antropofágicos. O trabalho acontece na encruzilhada entre a força visual e material dessas peças e o jogo metafórico e conceitual. Por um lado, sugere, de modo dramático, a deglutição do homem pelo homem; por outro, propõe uma arqueologia do futuro, que cataloga e dispõe os resíduos do loop ecológico humano. Nesse sentido, comenta sobre o absurdo da cadeia industrial que extrai o minério por meios complexos e custosos, para depois empregá-lo na criação de máquinas utilizadas para extrair mais minério, que depois são destruídas, sendo largadas sem valor na selva, para serem absorvidas novamente pelo solo, juntando-se, de algum modo, ao mineral em sua forma bruta.
A segunda, intitulada Arco (2020-2024), é a materialização de uma pesquisa conduzida desde 2011, que resultou em sua dissertação de mestrado, fundamentada na ideia do “arco do desmatamento” [1] como obra de arte. Por meio de diferentes capítulos, a tese aborda esse fenômeno extrativista por diversos vieses, destrinchando seus aspectos conceituais, imagéticos e físicos. Essa noção do “arco do desmatamento” como ideia, como visualidade, como intervenção ou escultura é desenvolvida formalmente como uma videoinstalação em três canais. Nela, as telas são alinhadas de modo irregular e justapostas por um painel de madeiras cortado a laser, com formas que remetem a processos de fragmentação, afiados e caóticos. Aparecem, então, a brutalidade da desflorestação, a intensidade do calor, as dinâmicas destrutivas da economia e o assombro do caos que envolve esse fenômeno. Na parte de trás do painel, quatro imagens dispostas como bandeiras anguladas trazem imagens de geoglifos recém-descobertos na Amazônia, contrapondo temporalidades e visões de mundo.
[1] Termo utilizado por órgãos e instituições ambientais para se referir à região onde a fronteira agrícola avança em direção à floresta, apresentando altos índices de desmatamento da Amazônia, somando cerca de 500 mil km² de terras, que vão do leste e sul do Pará em direção oeste, passando por Mato Grosso, Rondônia e Acre.
(1-6) Moquém – Carnes de caça, 2023-24, peças de trator incineradas e derretidas em garimpo em Itaituba, Pará; aço, ferro, plástico e asfalto, várias dimensões. Coleção do artista
(7-12) Arco, 20-2024, videoinstalação feita a partir da pesquisa "Arco: desmatamento como obra" — vídeo tri-canal, 3'30", sem som; imagens de geoglifos impressas em tecido, cabos de aço, tubo de aço, chapa de MDF cortada com padrão de desmate. Coleção do artista